quarta-feira, 2 de junho de 2010

Evo-devo: sobre genes homeóticos e "kit de ferramentas"

ResearchBlogging.orgAnna Carolina Russo C. Martin
anna.russocm@gmail.com

A morfologia orientou durante um bom tempo os trabalhos de reconstrução das relações de parentesco entre as espécies a partir do reconhecimento de suas semelhanças. Neste interim, acreditava-se que quanto maior fosse a semelhança morfológica entre dois táxons terminais, maior seria a semelhança genética entre eles, e vice e versa. Porém, como podemos ver em ensaios anteriores, podem existir semelhanças genéticas entre espécies muito distintas morfologicamente. Isso porque existem alguns genes compartilhados por vários grupos – não proximamente aparentados segundo as filogenias – que são responsáveis por ativar partes do DNA que irão diferenciar partes do corpo desses animais, portanto uma espécie pode conter um gene que está desativado e desta forma não é expresso nela, mas em uma outra espécie ele está ativado. Isso as deixa morfologicamente diferentes.

Se olharmos as diferenciações que ocorrem desde o estágio de zigoto, podemos observar que de uma única célula é originado um conjunto de sistemas extremamente complexo, através de processos de especializações das células de acordo com a função que ela desempenhará no indivíduo adulto, sendo esta determinada através de ativações nos genes que farão com que haja a produção seletiva de proteínas.

As informações necessárias para entender como acontece esse mecanismo detalhadamente foram obtidas em um primeiro momento através de estudos em bactérias Escherichia coli (que possui apenas um par de cromossomos), e deram um importante embasamento nas análises do desenvolvimento e da evolução de tanto desse organismo quanto de drosófilas e até mesmo vertebrados. Um exemplo são os dados provenientes de um experimento realizado pelos cientistas François Jacob e Jacques Monod (ver Carroll, 2006, p. 61–62). A E. coli degrada principalmente glicose como fonte de energia, porém, na ausência de glicose e presença de lactose (um outro carboidrato), a bactéria libera a enzima beta-galactosidade, que quebra a lactose em glicose e galactose, que podem ser absorvidas pela bactéria. Os dois cientistas, juntamente com André Lwoff, ao pesquisarem qual mecanismo faz com que a E. coli, na ausência de glicose, começa a produzir altas quantidades de beta-galactosidade, descobriram que a indução enzimatica acontece da seguinte forma: quando não há lactose no meio, um interruptor, que seria uma proteína repressora, reconhece uma sequência gênica que se localiza próxima do gene que traduz a beta-galactosidade e liga-se a essa sequência inativando o gene. Porém, quando há lactose no meio, essa proteína inibidora solta-se da sequência de DNA deixando o gene de beta-galactosidade ativo, pronto para ser transcrito (Figura 1).

Figura 1. Esquematização do mecanismo de produção de beta-galactose em E. coli.

O uso controlado do gene através de uma proteína repressora e o fato dela reconhecer no DNA uma sequência específica próxima ao gene de trancrição são dois apectos da lógica genética que veremos se repetir inúmeras vezes. Esse processo é chamado de regulação gênica.

Uma vez entendido o funcionamento da regulação gênica, podemos passar para o próximo passo que é o descobrimento dos genes mestres, que se repetem nas diferentes espécies de animais (como citado por Carroll (2006), "da E. coli aos elefantes"), e que codificam estruturas importantes como olhos, apêndices e o próprio coração.

A descoberta destes genes começou com estudos em drosófilas no laboratório de Walter Gehring, na Universidade da Basiléia (Suíça), em que foi isolado o gene eyeless que, quando mutado, é responsável pela perda dos olhos em moscas. Gehring e sua equipe descobriram que o eyeless corresponde ao gene Aniridia, presente nos seres humanos, e ao small eye, nos camundosgos. A partir daí, concluiu-se que a maquinaria genética que expressa os olhos não surgiu 40 vezes de forma independente durante a evolução animal, como se pensava, mas apenas uma vez sendo acionado várias vezes nas diferentes espécies. Esse complexo gênico ficou conhecido como Pax 6. Depois dele, muitos outros genes homeóticos foram descobertos, tal como o Distal less, responsável pela formação de apêndices (ou de qualquer coisa que se projete para fora do corpo de um animal), e o gene Tinman, responsável pelo aparecimento de bombas circulatórias como o coração.

Os genes mestres, assim chamados por Carroll (2006), sozinhos ainda não são capazes de conseguir organizar e "construir" um animal, afinal apesar deles serem responsáveis por grande parte das estruturas vitais nos animais, não são responsáveis por sua organização. Ainda no laboratório de Gehring, foi descoberto através de estudos na drosófila que, para cada um dos genes mestres existe um homeobox (ou gene hox) responsável pelo local de surgimento da estrutura expressa. Por exemplo, o gene Tinman possui um homeobox que sinalizará o local de surgimento do coração em um camundongo, por exemplo. Além disso, foi descoberto que a disposição desses homeobox no DNA corresponde ao local de aparecimento dessas estruturas no corpo do animal adulto (Figura 2).

Figura 2. Representação dos genes Hox em drosófila com seu posicionamento no DNA e seus respectivos locais de expressão.

Desta forma, podemos dizer que cada animal possui um "Kit de ferramentas" que, quando unidos, são capazes de construir um animal. Não importa seu tamanho nem sua complexidade, todos animais são definidos a partir de um pool gênico compartilhado, com pequenas alterações, cuja expressão diferencia-se por sua ativação ou desativação em determinadas espécies, e por pequenas mutações que podem ocorrer durante a história evolutiva.

Bibliografia:

Carroll, S.B. 2006. Infinitas Formas de Grande Beleza: Como a evolução forjou a grande quantidade de criaturas que habitam nosso planeta. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 09 –81.

Gehring, W., & Hiromi, Y. (1986). Homeotic Genes and the Homeobox Annual Review of Genetics, 20 (1), 147-173 DOI: 10.1146/annurev.ge.20.120186.001051

GEHRING, W. (2001). The genetic control of eye development and its implications for the evolution of the various eye-types Zoology, 104 (3-4), 171-183 DOI: 10.1078/0944-2006-00022

Koroma BM, Yang JM, & Sundin OH (1997). The Pax-6 homeobox gene is expressed throughout the corneal and conjunctival epithelia. Investigative ophthalmology & visual science, 38 (1), 108-20 PMID: 9008636

Quiring R, Walldorf U, Kloter U, & Gehring WJ (1994). Homology of the eyeless gene of Drosophila to the Small eye gene in mice and Aniridia in humans. Science (New York, N.Y.), 265 (5173), 785-9 PMID: 7914031

Robert J. S. 2001. Interpreting the homeobox: methaphors of gene a.ction and activation in development and evolution. Evolution & Development 3:4 287-29

Zhang J, & Nei M (1996). Evolution of Antennapedia-class homeobox genes. Genetics, 142 (1), 295-303 PMID: 8770606