terça-feira, 10 de novembro de 2009

A grandiosa complexidade da vida

por Leandro Pereira Tosta
Universidade Federal do ABC
e-mail: leandropereiratosta@gmail.com

A grandeza natural

As populações mendelianas são conservativas quando não se encontram sob seleção, porém, sob forte seleção, elas podem rapidamente produ
zir combinações de genes que são, em uma primeira impressão, extremamente improváveis (Hoekstra e Stearns, 1991). Mas qual a dimensão dessa improbabilidade? Quais são os mecanismos responsáveis pela grandiosa multiformidade da natureza? Essas são algumas das questões que Richard Dawkins (1986) discute em sua obra “O Relojoeiro Cego”, assim como a questão do desígnio divino e da evolução das espécies à luz do darwinismo.

Para nossa discussão, devemos inicialmente refletir sobre a engenhosidade da formação dos seres vivos em relação às obras consideradas de altíssima complexidade tecnológica desenvolvidas pela inteligência humana.


Consideráveis aperfeiçoamentos na aviação se
deram desde o 14-Bis, criado por Santos Dumont no início do século XX, devido principalmente às guerras ocorridas no mundo. O ápice do avanço na velocidade de um avião tripulado se dá com o modelo SR-71 “Blackbird” (Fig. 1) do exército norte americano, cuja velocidade ultrapassa em três vezes a velocidade do som (mais rápido que um míssil). Para se colocar em prática o projeto “Blackbird” foram gastos bilhões de dólares, muitos anos de pesquisa no desenvolvimento da tecnologia e dedicação de dezenas de cientistas.

Figura 1 - SR-71 Blackbird

Seria quase inacreditável imaginar que em um curto espaço de tempo fosse possível a decolagem do primeiro avião até o surgimento de modelos tão velozes quanto uma bala de revólver se não houvesse os conhecimentos acumulados pelo homem. Na biologia, as coisas não são muito diferentes. É preciso olhar mais criticamente a natureza ao nosso redor e analisar quão improvável é a formação de um ser vivo e as circunstâncias que levam à diversidade de espécies no planeta.


Acredita-se que o primeiro “passo” da vida deu-se nos oceanos, que eram verdadeiros caldos de compostos químicos reunidos em decorrência da quiralidade (polarização entre cargas elétricas) molecular e de condições físicas específicas (temperatura, composição atmosférica, choques mecânicos e descargas elétricas) por um processo aleatório, dispondo aminoácidos em ordens passíveis de originar proteínas e, em um momento posterior, a vida em si. Como é possível que um evento como a origem da vida, em meio a uma incrível improbabilidade, tenha ocorrido? Vamos exemplificar essa improbabilidade através de um cenário hipotético.As 31 letras em THEREISGRANDEURINTHISVIEWOFLIFE (“Há grandeza nesta visão da vida”) podem ser comparadas a uma sequência de 31 genes (cada letra, um gene), com 26 versões diferentes possíveis (cada gene pode assumir 26 letras distintas, A, B, C etc.). Se a evolução posicionasse tais sequências de maneira completamente aleatória, ela teria de selecionar entre 26³¹ (7,31 x 1043) diferentes combinações possíveis de letras até chegar à sequência certa (Dawkins, 1986). Diante desse número, fica fácil mostrar como a evolução NÃO tem apenas um componente aleatório.

Em organis
mos vivos, a seleção natural provoca o aumento da freqüência de combinações gênicas favoráveis, e a replicação acurada tanto das moléculas quanto nas populações (Ewens, 1993). Nas palavras de Dawkins (1986), “A seleção natural, processo cego, inconsciente e automático que Darwin descobriu e que agora sabemos ser a explicação para a existência e para a forma aparentemente premeditada para de todos os seres vivos, não tem nenhum propósito em mente. Ela não tem nem mente nem capacidade de imaginação. Não tem nem visão nem antevisão. Se é que se pode dizer que ela desempenha o papel de relojoeiro da natureza, é o relojoeiro cego”.

Evolução, transformismo e desígnio divino

O pensamento cientificista a partir do século XIX passa a valorizar ainda mais a discussão de conceitos sobre a vida. Esforços de grandes cientistas se deram a fim de questionar a crença criacionista. Desde então, a ciência tem procurado compreender o ser vivo como parte inerente da natureza, sem considerar o sobrenatural.

É no século XIX que surge a biologia evolutiva, que não prevê a existência de um desígnio divino para explicar a natureza.
Evolução significa mudança, mudança na forma e no comportamento dos organismos ao longo das gerações. As formas dos organismos em todos os níveis, desde a sequência de DNA até a morfologia macroscópica e o comportamento social, foram modificadas a partir dos seus ancestrais durante a evolução (Ridley, 2006). Nesse sentido encaixa-se a frase “nada na biologia faz sentido exceto à luz da evolução” (Dobzhansky, 1973).

As três principais idéias quanto à origem da vida são: evolução, transformismo, e criacionismo. Na evolução, todas as espécies têm uma origem comum e podem mudar ao longo do tempo. No transformismo, as espécies têm origens separadas, mas podem mudar. No criacionismo, as espécies têm origens separadas e não mudam (Ridley, 2006).

O exemplo dos felinos

A saga dos felídeos sobre a terra, segundo o evolucionismo, começou na Ásia. A primeira grande radiação (derivação) moderna desse grupo teria ocorrido há 10,8 milhões de anos, com o surgimento da linhagem Panthera da qual fazem parte o leão, a onça, o leopardo e o tigre. Na América do Sul, esse grupo chegou há cerca de 2,3 milhões de anos (Antunes et al., 2006). O evolucionismo constrói um cenário em que a linhagem Panthera é fruto de derivações, seleções e adaptações de organismos já existentes (ancestrais comuns).

Segundo o transformismo, os representantes da linhagem Panthera se originaram independentemente a partir da matéria inanimada e “evoluíram”, tendendo ao aumento da complexidade morfológica, a partir da influencia da geografia local. O principal representante do transformismo foi o naturalista francês Lamarck. A teoria transformista não explicava satisfatoriamente a semelhança morfológica entre indivíduos considerados grupos irmãos pelo darwinismo, que deteriam características comuns. Hoje, pelo desenvolvimento da engenharia genética, comparando-se dados moleculares, sabe-se que o transformismo é uma teoria refutada e caída em desuso.

As idéias criacionistas para explicar a origem da linhagem Panthera pressupõem duas vertentes (Ridley, 2006): os felinos domésticos (Felis catus) (Fig. 2) forma pré-concebidas a partir de um desígnio divino e não sofreram modificações ao longo dos anos, assim como os demais felinos. A teoria criacionista pode ser colocada em xeque ao se indagar a seguinte questão: se o Felis catus tem origem no “início” dos tempos, juntamente com todos os outros animais, por que são encontrados fósseis muito antigos, com centenas de milhões de anos, de grupos como artrópodes, e não de felinos? Ou ainda, como explicar a incrível semelhança genética e morfológica entre os representantes das várias linhagens? Como se pode observar, a teoria do desígnio divino traz incoerências muito fortes (Dawkins, 1986).

Figura 2 - Felis catus (gato doméstico).

Explicando a evolução Stearns & Hoekstra (1999) salientam que “para explicar a evolução das histórias da vida, devemos combinar informações de quatro fontes: demografia, genética quantitativa, trocas (tendendo ao equilíbrio) entre desempenho e custo energético e cladística”. A demografia conecta a variação específica de tamanho e de idade à variação do desempenho com relação à sobrevivência e à fecundidade, referindo-se à seleção natural sobre os traços da história da vida. Consideremos, por exemplo, uma população de formigas. A faixa etária “ótima” para a reprodução dessa formiga é X semanas. Porém, se uma doença ou maior pressão de um predador assolar o formigueiro, a resposta evolutiva diminui a faixa etária de reprodução para X-Y (onde Y é o tempo necessário que pode representar dias ou até semanas, para não se extinguir tal população, e é orientado pela seleção natural).

Traços poligênicos quantitativos (alterações nas estruturas dependendo da herdabilidade) relacionam resposta forte à seleção quando há grande herdabilidade. Tal fato é compreendido com a ajuda da genética quantitativa. Um exemplo é dado por Yoo (1980). Conseguiu-se uma resposta muito forte à seleção sobre o número de cerdas abdominais em moscas Drosophila, um traço com grande herdabilidade. Por outro lado (Nordskog, 1977), a seleção sobre a taxa de reprodução de ovos de galinha, um traço de baixa herdabilidade, não obteve sucesso.

Na natureza, os organismos estão susceptíveis ao balanço entre trocas de investimento de energia, uma “economia natural” (Ricklefs, 2003) em que traços morfológicos que demandam grandes quantidades de energia, mas são vantajosos (como a plumagem da cauda do pavão macho necessária no cortejo da fêmea), em troca deixam seus portadores vulneráveis aos predadores (que encontram certa facilidade de ataque, pois a presa possui pouca mobilidade devido à grande massa que a plumagem fornece). Os efeitos filogenéticos são a contribuição dos traços compartilhados por todos os indivíduos de uma espécie ou uma clado.

Cladogramas são árvores filogenéticas que carregam informações em análise (Fig. 3). As representações de árvores filogenéticas baseiam-se, estruturalmente, no princípio de ancestralidade comum que nada mais é do que o cerne da teoria da evolução. A grande importância dessas representações é que podem ser entendidas pelo público em geral de modo mais prático e muito mais simplificado. Podem-se interpretar as árvores evolutivas e usá-las para organização da biodiversidade sem conhecer em detalhes as deduções e o método para inferências filogenéticas.

Uma árvore evolutiva é uma descrição, através de diagramas, das relações entre entidades biológicas conectadas por meio de ancestrais comuns (ancestralidade comum). Tais árvores podem contar a história evolutiva dos vários seres vivos que coexistiram na Terra por mais de quatro bilhões de anos. É possível reconstruir a árvore da vida “galho por galho” a partir de táxons terminais representados pelos galhos finais que se conectam a um único tronco e raízes universalmente compartilhadas (Tosta, 2009).

Figura 03 - representação de um cladograma. Os terminais nem sempre são espécies, podem ser gêneros, famílias ou outros níveis hierárquico (adaptado de Lopes, 2002).

Comentários finais

Segundo os comentários apresentados ao longo desta resenha, podemos analisar um pouco mais profundamente as relações entre organismos recentes e suas origens. Assim, é importante discutir a respeito da real história que se desenrola a luz do evolucionismo impulsionado pela seleção natural (mas não só por ela). Devemos nos ater nas às evidências apresentadas e refutar as teorias que não oferecem respostas concretas às questões sobre as quais nos deparamos cotidianamente. Para se compreender a grandiosidade das belas e eficientes formas que os organismos apresentam, devemos nos lembrar do surgimento do primeiro organismo, os bilhões de anos que o separam dos seus ancestrais recentes, a extrema complexidade morfológica que estes apresentam e ainda os eventos construtores das formas atuais (seleção natural e deriva genética) que os modelaram e os modelam ainda hoje. A reflexão crítica se faz necessária para aceitarmos, definitivamente, a grandiosa complexidade da vida.


Bibliografia:

Antunes, A., Eizirik, E., Johnson, W.E., Murphy, W.J., O’Brien, S.J., Pecon-Slattery, J., Teeling, E., The late iocene radiation of modern Felidae: a genetic assessment, Science, vol. 311, n. 5757, p. 73-77, 2006.
Dawkins, R., O relojoeiro Cego, 1986.
Gregory, T.R., Understandining Evolutionary Trees: Education and Outreach, vol. 1, n. 2, p. 121-137, 2008.
Lopes, S. Bio2, São Paulo, Saraiva, 2002.
Motoyama, S., O Nascimento da Evolução Biológica, Scientific American Brasil, p. 45-53, 2006.
Tosta, L.P., A evolução dos conceitos sobre árvores filogenéticas parte 1, www.evolucaodemetazoa.blogspot.com, 2009.
Ricklefs, A Economia da Natureza, 3a ed., 2006. Ridley, M., Evolução, 3a ed., 2006.
Santos, C.M.D, Os dinossauros de Hennig: sobre a importância do monofiletismo para sistemática biológica, Scientia Studia, p. 179-200, 2008.
Scott, G.B.E.C., Manobras mais recentes do criacionismo, Scientific American Brasil Especial- Evolução da evolução, 81, p. 82-89, 2009.
Stearns & Hoekstra, Evolução uma introdução, 1999.

Fonte das figuras:
Figura 01:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Lockheed_SR-71_Blackbird.jpg
Figura 02:
http://www.mooseyscountrygarden.com/cat-dog-pictures/tabby-cat.jpg

Nenhum comentário:

Postar um comentário